sábado, 29 de outubro de 2011

Vai, Vives.

O Sono (1937) - Salvador Dali.
Ainda havia flores no ventre central da casa. E toda aquela áurea iluminada nos teus pés. Talvez fosse um anjo, ou um infante sorrindo a toda aquela gente, deitando-se na cama toda feita de lençóis azuis. As mãos atadas no átrio, entre uma imagem e outra: anjo, infante, tu mesmo. As mãos atadas no átrio, as janelas formavam-te nada mais que um semblante indiferente, propício ao sono. E perguntavas em uma entonação tão leve se a realidade era aquela mesma, ao constatar que bolhas surgiam em seu cérebro feito doces poesias em manhãs cantadas.
Ainda havia flores na cadeira em que estavas sentado, e nem parece que foi ontem a última passagem do rio pela tua sombra tão amargurada. Ares de lavanda teu quarto, não conversavas fazia tempo com ela, não é? Não comprimas teu rosto, deita-te nas flores acabáveis. Elas hão de te levar às sintonias dos orbes maiores. Como uma pequena poeira a condensar-se no espaço, ao encontro da misteriosa crença que nos eleva o ser.

Para Thais (Kika). Tu vais entender.

sábado, 22 de outubro de 2011

Samba

Acorda, meu bem.
Que o tempo tem andado na contra-mão
Há de vir novas paisagens sob esta sua praga,
sob teu ventre doce de ilusão.

Acorda, meu bem.
Que hoje a fé tem pedido um consolo teu
Sinal de bem estes teus olhos tão doces,
pondo no dia a poesia das frações.

Se acaso o vento esmorecer-te as trilhas,
roga comigo tua perdição ruim,
roga comigo o teu corpo incerto e tombo,
entre a tristeza que tu pintas nos versos,
e nossa cura, que desanda a grandes mágoas.

sábado, 15 de outubro de 2011

Esmorecidos

Poderia mostrar-me o rosto escandalizado e tímido num gesto sem ação. Aquela arma apontada ao feto, o vício correndo no meio das ruas sujas, entre homens calçados com solas duras à frente do ápice, da calmaria da cidade. Poderia acreditar que entre um corpo e outro semelhante, você pudesse me acordar no meio da noite, sem correria e morte vermelha de homens frágeis, sem que a dura face pudesse mostrar-se tão banal e sem amor. E que o rosto daquele rapaz jovem despedaçado pelo mundo, pudesse ter sido devolvido à ordem e obrigação de viver. Fora sua escolha? Quem sabe não. O maior mal do homem é tirar de outros a realidade que deste se desfez.
Enquanto as flores vomitam no meio da noite cascos de vidros, sonatas sem harmonia, arremessos de fogos contra essa gente, o sonho da poesia apodrece em cada esquina retirante de ideias, entre a loucura de um universo pesado e outro tão cru quanto a dor que consome os rostos abortados.
- São quase cinco.
- Da manhã?
- É claro. À noite a natureza dos sonhos aparece, é tudo mais claro. De manhã o mundo acorda, e faz brotar do limbo horizontes tristonhos e sem perspectivas como a gente.

sábado, 8 de outubro de 2011

Transtornar-se

A morte de Chatterton, 1856, por Henry Wallis.
Por que julgas, meu caro?
Se a fome há tempos recobria seu coração,
dentro de um ar, daquele ar ferozmente inabitável.

É como se um feixe de luz transparecesse sua alma,
e fosse já dia em seu túmulo,
perto ali de uma aurora silente e leve.

Por que julgas, meu caro?
Quando o ar dissimula uma escuridão em seu peito,
quando a sede da fonte benevolente já não mais existe.

Uma turva sensação rápida perpassa sua agonia,
nada mais existe.
Além do ser, nada mais.
Seu rosto fora condensado às estrelas maiores,
e hoje segue o curso cósmico dos Astros.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

"Engraçado é saber o quanto a noite enaltece sem reflexão tua presença. Amanhã pode ser que terminem de escrever nossa história. Em uma dessas lousas de Giz."

sábado, 1 de outubro de 2011

Ação

Fisgar do muro teus perfumes,
e consolar-me de outros ares.
Odiar o amor inacabado,
e ostentar das estrelas as mesmas noções de sempre.

Romper o laço,
a soma abstrata de nós.
Acabar-me de outra maneira,
já que tens medo de que eu vá cedo demais.

Tapar-nos as feridas,
o vulto inconsolável de outrora.

Reagir à distância,
como uma faca que corta os feixes do sol,
em belas tardes silentes - a saudade perdura.
E dormir na tranquilidade que não chega.

Do amor dou-te um sincrônico verso,
aquela poesia demorada.
E se amanhã eu desistir de ti, minha fina letra,
não terá sido culpa minha.